Cauterizai o meu umbigo – Resenha – Jussara Santos – LITERAFRO, 2011

Partindo de um certo umbigo
Jussara Santos

Literatura, valor e cânone, três termos que propiciam indagação. A literatura
sempre foi e sempre será, creio eu, alvo de discussões em torno de sua
especificidade. Prova é que essa senhora ou senhorita, não sei, vive
provocando debates, seminários, dissertações, teses, rodas de poesia.

Enfim, estamos sempre buscando definir esse tal específico do literário. Nessa
tentativa de definição, questões vão se apresentando e a maioria delas, muitas
vezes, vai ficando sem resposta, o que provoca outras questões. Nesse círculo
vicioso, pergunta-se: o fazer literário seria algo apenas para escolhidos e
privilegiados? Existiriam os gênios, aqueles que, diferentemente dos demais
nasceriam com o dom para a escrita? Ou escrever literatura seria, de fato, 10%
inspiração e 90% trabalho? Ou seria apenas trabalho?

Acredito que a literatura pode adquirir contornos diferentes, se pensarmos
quem a faz, onde a faz, a razão pela qual ela é feita. Além disso, é preciso
considerar também quem a lê e o porquê de uma dada leitura. Assim, como
todo conceito, este também termina por adquirir um caráter relativo.

Porém, temos dificuldade de relativizá-lo, já que, enquanto apreciadores da
literatura, estabelecemos diferentes critérios de qualidade e por mais que
fujamos, caímos no fatídico julgamento de valor, dizendo, mesmo que baixinho,
isso é boa literatura, isso é má literatura.

Mais uma vez vemo-nos diante de outra conceituação também difícil: valor. O
que tem valor para mim pode não possuir valor para o outro, pelo menos não o
mesmo valor. Como ficamos então? Se acompanho os manuais literários e
defino literatura como arte, vejo-me diante de mais um conceito de conflituosa
definição. Afinal, o que vem a ser arte? O que é arte para mim é,
necessariamente, arte para todo mundo?

Assim, a literatura é e sempre será, a meu ver, objeto de interrogações. Talvez
seja por isso que ela permaneça mais viva do que nunca, contrariando aqueles
que decretaram e que decretam, apavoradamente, a sua morte.
Uma vez que falamos em literatura, valor e arte, falamos também em cânone,
essa lista que é resultado de escolhas que fazemos a partir de critérios de valor
e gosto pessoal. Pensar em cânone é pensar nas influências que sofremos de
nossos familiares e talvez, principalmente, de nossos professores, quando de
nossas primeiras leituras.
Ressalto que somos influenciados por critérios acadêmicos de leitura e que os
escritores dos quais gostamos também nos influenciam quando indicam
autores e livros, seja em entrevistas ou através de seus próprios textos
ficcionais. Portanto, somos influenciados e, consequentemente, influenciamos
outros.

Frente aos estudos culturais, a discussão em torno do cânone literário ocupa a
ordem do dia. Sérgio Medeiros, em ensaio intitulado Do singular ao plural,
salienta que a denominação “estudos culturais” não se refere a um método
específico, ou a uma “teoria” já pronta. Ao contrário, os
”estudos culturais” parecem decretar justamente o fim do
método canônico, o fim da perspectiva única na leitura e
análise do “artefato” literário, para nos limitarmos ao âmbito da
literatura comparada. (Medeiros, 1998 p. 54)

Essa perspectiva é, segundo Medeiros, uma perspectiva plural a qual, ainda
que não seja nova, apontaria uma tendência do pensamento no final de
milênio.

Os estudos culturais proporiam, então, a reversão do cânone e a inclusão de
novos textos e novos autores no cenário da literatura. Porém, há quem aponte
uma postura radical de alguns “seguidores” dessa nova vertente crítica.
( … ) há um contrassenso histórico no desejo de modificar o
cânone passado, para nele incluir os então excluídos. Houve,
historicamente, a opressão e o silenciamento das mulheres,
dos não brancos, dos colonizados. Isso é lamentável, e deve
ser apontado para que não continue a ocorrer. ( … ) Mas não
se pode mudar a história passada; ( … ) Excluir do cânone um
Dante, para colocar em seu lugar alguma mulher medieval que
porventura tenha conseguido escrever alguns versos, não seria
ato de justiça; seria, no máximo, uma vingança extemporânea.
(Perrone, 1998 p. 198)

Leyla Perrone ressalta ainda que é um Contrassenso excluir do cânone os
“politicamente incorretos” sem considerar a consciência possível de cada
época e as complexas relações entre autor e obra, literatura e sociedade.
Num tom, por vezes nostálgico, Perrone reivindica a presença de um cânone e
toma a defesa do que considera alta literatura. “Se todas as minorias reclamam
os seus direitos, por que não os reclamaria a minoria representada pelos
leitores de alta literatura?” (Perrone, 1998 p. 213)

Mas o que seria alta literatura, a não ser nossa lista, pautada em aspectos
culturais, de textos e escritores compatíveis com critérios de qualidade e
gosto? Acredito que a abertura do cânone para a inclusão de textos, autores e
discursos antes ou sempre excluídos dele, é uma proposta válida e até mesmo
necessária. Todavia, há que se ter cuidado para não cair em outro extremo e,
mais uma vez, valorizar apenas os modelos e discursos que nos interessam,
rechaçando uma especificidade literária em favor de um discurso, por vezes,
apenas ideológico.

A meu ver, há possibilidade de, do ponto de vista desses estudos, analisar, não
de uma forma apaixonada, textos nos quais as margens tomam a palavra e
falam de si, refletindo partir de uma especificidade literária, a fala e voz dos
excluídos.

Talvez a revolução mais contundente seja a revolução construída a partir da
própria palavra; no interior dela mesma. Por isso, quando analiso textos onde a
fala e a voz dos excluídos são trazidas à tona, busco pensar, via palavra, a
construção do que Homi Bhabha chama de projeto ético e estético, ou seja, um
projeto onde as questões éticas são postas em uma cena antes de mais nada
literária (Bhabha, 1998). É esse projeto que busco nos textos das margens que
analiso.

Desse modo, ponho em diálogo os contos “Luís e o baú de Luís Gama”, 1999,
de Márcio Barbosa e “Cauterizai o meu umbigo, oh, mãe!”, 1986, do escritor
mineiro Eustáquio José Rodrigues. A escolha dos dois autores deve-se ao fato
de, em muitos de seus textos, ser possível perceber um eu que assume a sua
negrura e tenta resgatar elementos de uma dada etnia. Esses autores parecem
não perder de vista que elaboram esse resgate via texto ficcional, o que
possibilita pensar seus contos como construção do projeto ético e estético
mencionado.

Do espaço da diferença, os autores analisam, em suas narrativas, o lugar do
brasileiro marginalizado e as raízes que fundamentariam a nossa “brasilidade”.
Rodrigues, por exemplo, faz aflorar suas reflexões em torno do processo
identitário, a partir de um diálogo com África.
Tanto “Luís e o baú de Luís Gama”, quanto “Cauterizai o meu umbigo, oh,
mãe!”, apresentam homens de ascendência africana que, ao se encontrarem
com amigos, resgatam um passado ancestral e, num movimento de
deslocamento, descobrem-se outro.

O conto “Luís e o baú de Luís Gama” relata-nos uma descoberta. Sabendo do
interesse do narrador pela história do “povo negro”, Arnaldo, um antiquário,
apresenta a ele um baú, que diz pertencer ao poeta abolicionista Luís Gama.
Encantado, o narrador o compra.

Ayama, a esposa, não acreditava naquela raridade. Achava um desperdício,
um gasto excessivo de dinheiro para quem devia meses de aluguel. Mas, para
ele, o que valia mesmo era a possibilidade de ter em casa um objeto que trazia
consigo a carga de toda uma ancestralidade. Assim, depois de ouvir Ayama
tripudiar sobre sua compra, o narrador personagem decide abrir o baú diante
de alguns amigos que a esposa havia convidado para uma reunião informal.
Enquanto o abre, Arnaldo narra a história do poeta negro desconhecido, ao
qual dizia pertencer o baú, e sua luta em favor da abolição. De repente, ao
longo da narração, junto a Luís Gama surgem outras figuras, Malcom X, Luther
King, Clementina de Jesus, Solano Trindade e tantas outras referências
negras.

A família, sim, formavam agora uma família, estava embevecida diante do baú
aberto, aquela caixa de Pandora que trazia revelações. Frente àquele objeto,
todos começaram a se conhecer, bebendo, dançando sambas antigos. Esse
beber e dançar em conjunto se traduziu num ritual de (re)conhecimento. Todos
pareciam em transe. O narrador e sua mulher não mais falavam, tudo agora se
fazia pelo gestual e não pelo verbal. Tudo se traduzia em corporeidade.
Ao final da narrativa, sabe-se que, depois de tempos, Arnaldo, o antiquário,
procura nosso narrador personagem para devolver o dinheiro da compra do
baú. O antiquário descobrira que ele fora fabricado em 1890 e Luís Gama
morrera em 1882. “- Luís, perdoe-me, o baú era falso”. (p. 114).
Porém, a sua procedência já não tinha mais importância. Ele já havia, inclusive,
sido vendido para sanar as dívidas de nosso narrador que, agora, sabia muito
mais de si.

O baú era falso apenas para o antiquário, na medida em que, para ele, possuía
um valor unicamente material. Já o narrador, através do próprio nome, Luís,
configura-se como um prolongamento do poeta, mas não um prolongamento
puro e simples. Assim como o baú que, para ele, armazenava uma Gama de
valores culturais, o narrador também apresenta-se como um receptáculo de
conhecimentos e, abrindo-se e revelando o que sabe, altera comportamentos.
Em diálogo com o texto de Márcio Barbosa, o texto de Eustáquio José
Rodrigues nos apresenta um processo de (re) conhecimento, vivenciado pelo
narrador personagem do conto “Cauterizai o meu umbigo, oh, mãe!”.

O processo vivenciado pelo narrador do conto em questão tem início em uma
reunião de amigos. O pretexto fora um almoço na casa de Limpunda ao qual
compareceu também Wyombo. O narrador, Limpunda e Wyombo são africanos
e aquele encontro torna-se espaço de reflexão sobre significados e simbologias
daquela ascendência, sobre o lugar do colonizado e do colonizador, do
dominador e dominado no interior da própria África.
De etnias diferentes, Limpunda e Wyombo, Bamongos ou Mongos, o narrador,
Ndombe, salientam em seus relatos os conflitos manifestados no interior das
relações estabelecidas entre os homens.

Limpunda apontou para uma arma pendurada na parede. Algo
como se fosse uma espada, o cabo de madeira. Possuía na
ponta da lâmina, cuja maior porção era serrilhada, um grande
dente pontudo, oposto às serras, à feição de uma machadinha
de folha estreita. Perguntei-lhe de quem era aquilo. “Pertenceu
aos meus ancestrais” – respondeu. “Nas guerras que fizemos,
há vários séculos, vencemos muitas tribos, fizemos numerosos
escravos e expulsamos vários inimigos para o litoral. Só
restamos aqui nós, os mais fortes, os mais bravos, os mais
inteligentes”. Olhei-o curioso, a ver se realmente acreditava no
que estava dizendo. Meu pensamento, em volutas irrefreadas,
retornou no tempo. Fiquei pensando de onde poderia ter vindo
aquela poderosa maça de guerra… (p. 94)

Limpunda aloca àquele objeto, preso à parede, um caráter de superioridade,
força, bravura e inteligência. Destacando seu caráter ancestral, leva-nos a
pensar que aquela maça fora passada de geração em geração, o que aumenta
ainda mais seu poder de força. Utilizada durante as guerras, fora símbolo de
vitórias, fazendo escravos e expulsando vários inimigos. A maça tornou-se a
própria material idade da conquista.

Muitas vezes, ao tomar como referência a África, ou melhor, a África negra e
seu universo cultural, alguns ficcionistas, inconscientemente, tamponam os
conflitos interiores daquele continente em favor de uma África negra mítica,
onde reinaria a ausência de conflitos e onde se localizaria uma identidade
original. Ao contrário, na sua viagem ao passado, em busca da verdadeira
origem daquela maça de guerra, o narrador personagem põe em cena conflitos
que configurariam o interior das comunidades tribais, revelando a ambiguidade
e a ambivalência constitutiva do homem.

Sim, lembro-me bem, Limpunda. Éramos felizes. Éramos um
povo guerreiro, e também de artistas, na paz. Nossas guerras
eram ferozes, sangrentas, e faziam muitos prisioneiros, que se
tornavam escravos. Sim, Limpunda. Vários de vocês,
bamongos, foram nossos servos. E quando o potentado, nosso
sábio e bravo chefe, morria; (…) seus servos eram também
enterrados – vivos – junto a ele e a toda sua fortuna. Também
costumávamos jazê-lo partir acompanhado de suas mulheres.
Mas a estas dávamos morte digna antes de serem recolhidas à
tumba. Pois eram de nossa própria raça e, como vocês,
também nos julgávamos superiores, os Homens, os Ndombe. (
… ) Enquanto vocês, Limpunda, lembro-me, choramingavam,
pediam clemência, apegavam-se às suas vidas fracas, sem
valor. Às vezes os perdoávamos. E não os enterrávamos, e
ninguém mais os queria como servos que, sabíamos, a
fraqueza se transmite de pessoa a pessoa. ( … ) Quando
perdemos a guerra, Limpunda (…) pensei que seríamos
tratados da mesma forma. (…) Então ajoelhei-me, quebrei
minha lança, entreguei-lhe minha maça de guerra; sim!; ESTA,
LIMPUNDA, QUE AGORA ME ESFREGAS À FACE COMO TUA! (p. 96)

Como se vê, muitas são as estratégias de dominação e, sob a égide do
discurso de sobrevivência a qualquer preço, os homens se vendem e vendem
outros homens não importando que meios utilizem para isso.
E não pude compreender quando amarraram-nos cangas ao
pescoço, e ajojados como bois fomos sendo tangidos através
da floresta, em direção ao litoral. ( … ) Tangeram-nos até a
praia. Escutavam o grito irado dos brancos, mantendo a cabeça
baixa. Ficamos estarrecidos. Então os brancos te gritavam aos
ouvidos? Na tua terra? Compreendemos. (…) Éramos como
porcos. Sim, como porcos, e como porcos tínhamos que ser
engordados. Pois é, Limpunda, compreendemos: estávamos
sendo vendidos. (…) Olhei-te nos olhos. O tempo todo olhei-te
nos olhos. Bamongo, hein? Eu voltarei, bamongo! (p. 96)

Tudo começara com um almoço, mas como a comida não vinha, Wyombo
quase desistiu dela. Porém, chega Séia que, ao ser informado da discussão
sobre a maça de guerra dos Mongo, põe também em cena valores de seu
povo.

Séia era Malele e enquanto o povo Mongo exibia maças de guerra na parede,
os Malele expunham gente, mãos dedos, pedaços de gente.
Enquanto os Mongo vendiam outros homens negros aos brancos, os Malele,
segundo Séia, providenciavam a morte de seu chefe, caso ele cedesse às
imposições dos homens brancos.

Diz um ditado que a vingança é um prato que se come frio. Os Malele pareciam
pensar desse modo, uma vez que, ao relatar a morte do chefe, Séia relata
também um jogo lento e vingativo, onde a morte adquire um caráter ritualístico.
A tarde caindo, dois caras, ar inocente, vêm convidar o chefe
para a festa rio abaixo, no Village. Então, pela noite morta, a
lua brilhando pálida, descendo próximo à margem ladeada de
árvores grossas e cipós, lá vem o barco. O chefe gordo,
barrigudo, cabeceando, olhos semicerrados a antegozar a festa
que vem. (…) Aí, chega no Village. Todo mundo reunido,
baixam a cabeça cumprimentando o chefe· Vamos todos para o
salão. As moças dançando, o chefe assentado ao centro da
sala. Bêbado e comendo, aguardando o clímax da festa. (p. 97)

No banquete que antecede a sua morte, o chefe não imagina que se tornaria o
prato principal. No espaço da festa, vêm à tona relatos de torturas, abrem-se
feridas, expõem-se cicatrizes. Só então ele se dá conta do verdadeiro sentido
de estar ali.

Súbito se levanta um, pede licença, avança, tira a camisa e diz para o chefe:
– Tá vendo estas marcas em minhas costas? Está? Que o seu
amigo branco me fez com sua autorização? (…)
– Sabe por que estou mancando? Olha o meu tornozelo. Me
cortaram o tendão para que eu não fugisse. Trabalho
mancando, imagina como sofro, o retorno à cubata para mim é
mais longo. À noite sonho que estou a correr pelos campos. E
acordo, o tornozelo doendo. Acha certo isso, Ó Aquele Que
Nunca Teve Compaixão?
O chefe entende, enfim, o objetivo da festa. Às vezes
reclamam, choram, pedem pela vida. Prometem regenerar-se.
Outras vezes pedem apenas mais um copo de vinho de
palmeira. (p. 98)

Em estado de frenesi, ou melhor, histeria, alguns homens puxam facão,
mulheres gritam, batem os punhos no chão, crianças cantam e pulam.
Decepam a cabeça e os membros do chefe.
(…) Preparam-no igual a um leitão. Com azeite de dendê,
pimentão, tomate. E cada um come um pedacinho, por menor
que seja. As crianças recebem os dedos dos pés, para brincar;
ninguém gosta de comer os dedos, muito osso e pouca carne.
(…) Finalmente, o que matou, o que deu a traulitada inicial, tem
direito de ficar com a mão direita do chefe. Embalsama ela e
pendura em casa, no meio da parede da sala. (p. 98)
Séia acrescenta ao relato pitadas de ironia e salienta que aquela deglutição se
estende também ao branco, “quando este se mostra arrogante, metido a bravo,
a chamar todo mundo de ignorante e preguiçoso” (p.98). A devoração do chefe
e do branco são índices, segundo Séia, de determinação e bravura do povo
Malele.

Até hoje, na minha cidade, Kissangi, quando vem um branco
na casa da gente propor negócio (…) levamos ele para a sala e
mostramos a mão na parede; que depois de um tempo
ninguém sabe se é de branco ou se é de preto. Faz-se
negócio, leva-se adiante, mas antes mostramos pra ele: “olha
aí, ó se fizer sacanagem sua mão vai pra parede”. (p. 98)

Esses rituais antropofágicos podem apontar tanto a recusa, através do
assassinato, quanto a assimilação do outro, através de sua deglutição.
Portanto, as relações se estabelecem nesse movimento de rejeição e
assimilação, que possibilita à pessoa transformar-se em outra.
Todavia não importa se os fatos narrados aconteceram ou não. O que lhes
garante veracidade é o poder da palavra e dos objetos na parede que
materializariam a força dos Malele, dos Mongo e dos Ndombe. Os relatos
revivem o passado da escravidão e sua perversidade alocada tanto no homem
branco, quanto no homem negro. Os narradores presentificam esse passado,
transitam entre o ontem e o hoje, deslocam-se.

Nesse sentido, vale lembrar Homi Bhabha que, ao discutir a questão da cultura
na esfera do além, salienta:
o presente não pode mais ser encarado simplesmente como
uma ruptura ou um vínculo com o passado e o futuro, não mais
uma presença sincrônica: essa auto presença mais imediata,
nossa imagem pública, vem a ser revelada por suas
descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias.
(Bhabha, 1998 p. 23)

Ainda nesse processo de presentificação do passado, o narrador-personagem
questiona o caráter contraditório do homem branco.
Sim, Limpunda. Eu não consegui compreender o código dos
brancos. Alguns deles havia que também trabalhavam como
escravos. Mas mesmo assim não se sentiam iguais a nós.
Tratavam-nos como se fôssemos animais. E os outros brancos
também não os tratavam como se fossem gente. Tinham
oportunidade de fugir e não fugiam. Nas paradas, nos vários
portos do litoral, onde novas levas de escravos africanos
entravam, eles podiam se internar na floresta e não o faziam.
Auto escravos, é o que eram. Ficavam na escuridão por própria
escolha. ( … ) Por que seus olhos nos olhavam sempre com
ódio, se nada lhe fizéramos a não ser perder uma guerra, que
contra eles fora? ( … ) E cheguei do outro lado da terra cheio
de confusões. ( … ) Por que não podia um homem sustentar
várias mulheres, e, ao contrário, tinham elas que rolar pelas
ruas vendendo seus corpos e sendo humilhadas; tendo
chamado de sórdido o comércio do amor? ( … ). (p. 99)

Em tom nostálgico, o narrador personagem de “Cauterizai o meu umbigo, oh,
mãe!” aloca em Limpunda a figura do traidor. A personagem nos é apresentada
como o grande responsável pelos sofrimentos do narrador. Portanto, readquirir
aquela maça de guerra é readquirir a energia, a força vital, a simbologia de
todo um universo cultural. O narrador acreditava estar ali, naquela maça, a
solução para seus conflitos e a afirmação e definição de sua identidade.
Ah, Limpunda, para que mundo me enviaste! (…) quanta
dificuldade tive para sobreviver. Baixei a cabeça, olhei de
soslaio. Comi os restos do porco, com o feijão que nascia entre
os cafezais. Plantei o milho escondido, vivi de saka-saka, a
folha da mandioca brava.
Quantas vezes eu divertia o seu amigo branco, cantando
histórias, contando sons e toadas. Anos e anos se passaram,
Limpunda, até que consegui descobrir quem eram vocês, você
e eu amigo branco. Centenas de anos se passaram, Limpunda.
Centenas de braços, centenas de ventres se abriram, e eu
surgi, afinal. Cruzei livros e máquinas, ventos e pensamentos,
mares e ódios, amores e covardias. Mas aqui estou, Limpunda,
a ouvir suas baboseiras. Agora eu quero, Limpunda. Quero de
volta minha maça de guerra, roubada ao tempo de Diogo Cão!
(p. 101)

Enfim, os amigos se reuniram em volta da mesa. Enquanto bebiam e comiam,
nosso narrador convencera Limpunda a vender-lhe a arma, aquela que o
mesmo dizia pertencer a seus ancestrais e ter sido passada de geração a
geração. O narrador já tinha um lugar reservado para ela. Ia afixá-Ia na sala de
apartamento no Rio. “Porém, à medida que os dias foram se passando, cada
vez que eu olhava para aquela tramôndega sentia-me, mais e mais,
distanciado da pulsão inicial”. (p. 102)
A pulsão inicial agora distanciada. O impulso primeiro, o desejo da origem, da
identidade primordial, antes localizada naquela maça de guerra, parecia meio
sem sentido, agora que o objeto estava ali tão perto.

O narrador parece ter tido um encontro com o novo de que nos fala Bhabha.
Ou seja, com algo que não faz parte apenas do continuum de passado
presente, mas renova o passado, “reconfigurando-o como um ‘entre lugar’
contingente que inova e interrompe a atuação do presente: O ‘passado
presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver”.
(Bhabha, 1998 p. 27)

Nessa possível renovação a maça de guerra vai adquirindo outros significantes
e significados.
Na véspera da minha volta ao Brasil, chegando meio de
porre, tropecei e caí com o joelho na parte aguda da
machadinha. A lesão foi pequena, que a ponta já estava
um pouco rombuda. Ainda meio puto da vida tentei
colocá-la na mala. Não cabia. Parecia-me agora um troféu
sem tanto valor quanto o que eu lhe atribuíra até a
compra. (p. 104)

De maça de guerra à machadinha. De machadinha a troféu sem tanto valor. De
troféu a porrete. A desvalorização é progressiva. O objeto torna-se um peso e o
narrador termina por esquecer-se dele.

Expliquei então a mim mesmo que um porrete na parede não é
fundamental para que se mantenha acesa uma chama. Não
deve ser. Não pode ser.

E esqueci-a no quarto do alojamento, ao partir apressado para
pegar o avião que me conduziria a Bruxelas. (p. 102)

Passado o desejo inicial de ser reconhecido e de se reconhecer, o narrador,
num processo de negação do objeto desejado, parte com a certeza de que há
algo mais, um para além dos contornos da matéria. Ele parece fazer-se em/de
descontinuidades e desigualdades, num ir e vir entre passado e presente,
possibilitando um futuro renovado. Nesse movimento, o narrador se reavalia e
reavalia toda sua condição de homem e negro.

Barbosa e Rodrigues parecem compreender que a literatura é passado e
presente e, por que não, futuro. Ao colocarem em cena um universo negro,
todo um passado ancestral e um imaginário étnico, parecem querer estabelecer
um diálogo com o outro e nesse diálogo construir novas possibilidades.

O narrador de “Cauterizai o meu umbigo, oh, mãe!”, por exemplo, quando volta
ao passado, não presentifica uma África mítica, na qual reinaria o paraíso entre
etnias e onde se centraria uma identidade original. Por mais que falar no e do
passado em África aponte um sentimento de nostalgia e tentativa de estar
próximo à primeira mãe, os conflitos interiores das comunidades negras
africanas são postos em cena, assim como os conflitos de relação entre
brancos e negros. Através, desse passado renovado, dessa África reavaliada,
o narrador tenta cauterizar o seu umbigo.

O narrador do conto de Márcio Barbosa e um baú, o narrador do conto de
Rodrigues e uma maça de guerra; ambos permitem repensar as noções de
valor e de cânone aqui discutidas. Os dois deslocaram os objetos aos quais
dedicavam excessivo valor para outros espaços, ampliando-Ihes as
possibilidades. Tanto homens/narradores, quanto objetos, ao mudarem de
lugar, adquiriram outros valores, tornaram-se outros e passaram a se ver e,
quem sabe, também a ser vistos a partir de outros olhares.
Os textos de Márcio Barbosa e de Eustáquio José Rodrigues são construídos
por quem se reconhece marginal. Pensada durante muito tempo através do
ponto de vista do outro, a voz do segmento negro esteve fora do cânone
literário. Ainda que sua voz lá estivesse, ela era sempre filtrada pelo olhar e
pelo ponto de vista do não negro.

Considerando os estudos culturais, as escritas de Barbosa e de Rodrigues
encontrariam acolhimento, na medida em que traduzem a marginalidade do
discurso. A reversão de protagonistas, de olhares, falas e vozes, possibilitaria
incluir os textos dos autores em questão no cânone pleiteado pela vertente dos
estudos culturais.

Mas, retomando minha indagação primeira em relação à especificidade do
literário, creio que os textos de Barbosa e de Rodrigues, ainda que
presentifiquem o discurso das margens, vão para além disso. Seus
personagens não se fixam em um lugar apenas, deslocam-se, transitam.
Portanto, não reivindicam o deslocamento de um lugar fixo (margem), para
outro também fixo (centro). Em ambos os textos, o trânsito parece ser a chave
para o autoconhecimento.

Em “Luís e o baú de Luís Gama” e em “Cauterizai o meu umbigo, oh, mãe!”, o
segmento negro é posto em cena com conflitos, dificuldades, incertezas, que
se formam no interior das relações entre negros e negros, negros e brancos e…
Se algo é reivindicado, talvez seja a inserção do negro, autor, narrador,
protagonista, personagem de sua própria história, no para além das chamadas
palavras de ordem. O projeto ético e estético dos autores em questão talvez se
faça aí.

Referências:
BARBOSA, Márcio. Luís e o baú de Luís Gama. In: Revista Raça Brasil –
Negras palavras. Ano 4, n. 36, 1999. p. 114
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Ávila, Myriam et aI. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1998.
MEDEIROS, Sérgio. Do singular ao plural. Revista Cult, São Paulo, dez. 1998,
p. 54.
LITERAFRO – www.letras.ufmg.br/literafro
MOISÉS, Leyla Perrone. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
RODRIGUES, Eustáquio José. Cauterizai o meu umbigo. Rio de Janeiro:
Anima, 1986. p. 93-102.

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